Nem toda a alegria impregnada em A Lira do Delírio pelas imagens festivas de um bloco de carnaval marchando pela rua, nem mesmo a figura risonha de Paulo César Pereio pairando fantasmático sobre estas imagens, podem esconder o sereno pesar anunciado pelo texto que ouvimos na abertura. É o próprio Pereio que apresenta aquele universo de exaltação, lembrando que a efemeridade faz parte de sua natureza íntima.
Dita desta maneira, num tom que parece evocar uma voz do além, talvez esse chamado à realidade soe profético. No entanto, A Lira do Delírio não é um exercício de prospecção, mas um sincero inventário das ilusões. Olha-se para o Carnaval com uma frontalidade que talvez nenhum outro filme brasileiro jamais tenha alcançado; é porque não se apega ao pequeno universo que, durante quatro dias do ano, forja um espaço idílico para a fantasia de todos nós. O delírio só pode ser vivido em sua plenitude se houver a consciência de que a quarta-feira de cinzas está logo adiante: nem toda a alegria consegue evitar o desencanto, a ressaca.
Em 1973, Walter Lima Jr., seus atores e uma equipe mínima saíram pelas ruas do centro de Niterói dispostos a mergulhar de cabeça no desfile de blocos. Não havia personagens ainda, apenas atores fantasiados, interagindo com a vida real. Estas são as imagens granuladas e saturadas que aparecem no começo, e depois pontuam a narrativa. Cinco anos depois, o diretor retorna a esse material semidocumental e tenta alinhavá-lo dentro de um enredo. O primeiro corte de um momento a outro dá a dimensão exata do que se passou nesse intervalo. Saímos do encontro animado entre uma foliã e seu cortejador para, num salto, reencontrá-los numa boate, agora já como Nessi Elliot e Cláudio, uma táxi-girl e um malandro da noite. O que antes se mostrava uma franca e desmedida partilha de afetos agora se tornou uma relação comercial, racionalizada pelos papéis que ambos assumiram ao longo dos anos, uma barreira sentimental intransponível.
É uma ressaca moral, antes de qualquer coisa. Em A Lira do Delírio tudo parece mergulhado na mais pura dubiedade. Por trás de uma aparente planificação narrativa, onde se assumem algumas das regras mais clássicas do cinema de gênero (trens misteriosos, seqüestro de bebês, incêndios criminosos, maletas com dinheiro, prostitutas solitárias e um universo masculino entre o protetor e o opressor), surge um senso de profundidade revelador. Mais que improviso, o que há em A Lira do Delírio é uma verdadeira dramaturgia do risco de real. Que os personagens assumam os nomes dos atores que os interpretam, que as situações dramáticas não sejam planejadas num roteiro, mas estimuladas por um diretor que liga a câmera e se dispõe a transformar em cena o que quer que surja nessa arena aberta, tudo isso não trabalha em nome da simplificação do processo, onde a espontaneidade funcionaria como aliviadora das tensões. Pelo contrário: somos constantemente desafiados a encarar o perigo de viver, de sentir. E se o Carnaval é um momento próprio à inversão de papéis, que cada máscara vestida não sirva para esconder quem está debaixo dela, mas sim para adicionar àquela personalidade um traço de caráter que a torne ainda mais complexa.
Tudo recomeça na quarta-feira de cinzas, como Pereio anuncia no final, e o carnaval passado deixou marcas profundas demais para serem ignoradas. Num país que estava a um ano de ver a anistia de seus exilados, e que ainda não conseguira calcular os mortos e desaparecidos nos porões da ditadura, a experiência da ressaca parecia tão fundamental e necessária quanto a incontornável vontade de enxergar algum lirismo em meio a todo aquele caos delirante.
Por Rodrigo de Oliveira, crítico de cinema, redator e co-editor da revista Contracampo e colunista do jornal capixaba Século Diário.
SERVIÇO
Cineclube Buraco do Getúlio
Dia 07 de fevereiro, terça, às 20h
Casa de Cultura de Nova Iguaçu
Rua Getúlio Vargas, 51 - Centro - Nova Iguaçu
Próximo à Estação de Trem de Nova Iguaçu
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