domingo, 9 de dezembro de 2012

2º Filme do Ciclo Hohoho!


Em Babilônia 2000, Coutinho impôs algumas modificações na sua forma de filmar. Decide, em função mesmo da natureza do projeto - filmar a passagem do ano 1999/2000 no morro da Babilônia - dividir a filmagem com outras quatro equipes. O que pode sugerir a seguinte pergunta: o que se passa com a autoria de um documentário feito de imagens técnica e estéticamente heterogêneas, com vozes e entonações diferentes elaborando questões desiguais? O que faz essa diversidade ser, afinal, um filme de Eduardo Coutinho? A lei antropofágica - "só me interessa o que não é meu" - pode fornecer uma pista: filmar outras experiências de mundo para além das nossas, filmar o outro, parece ser, no cinema, o que desde sempre atraiu Coutinho. Multiplicar as equipes, os pontos de vista sobre o mundo a ser filmado, interagir com os personagens de várias formas, mesmo se nada disso tenha sido pensado à priori, intensificou esse movimento de sair de si, atingindo dessa vez a próprio figura do diretor-autor, que se fragmentou, se deslocou, descentralizando uma onipresença até então natural.

Nessa filmagem, ao princípio espacial da locação única (morro da Babilônia), somou-se um princípio temporal - realizar as filmagens em menos de 24 horas - e um princípio técnico/econômico - utilizar indiscriminadamente diferentes tecnologias digitais. Para Coutinho, se houvesse filme, ele teria de surgir dessa limitação espaço-temporal-tecnológica, dessa "prisão", o que implicou em muitas tensões e alguns riscos. O maior deles foi, em função do tempo de filmagem, o da superficialidade. Pois, em um certo sentido, Babilônia 2000 é quase oposto à Santo Forte, que coloca em cena 13 personagens, selecionados previamente depois de uma longa pesquisa e montados em longos depoimentos. 

As diferenças entre os dois processos de filmagem nos permitem, para além de qualquer julgamento de valor, vislumbrar as qualidades de um diretor que se permite tantas modificações em um curto espaço de tempo. Não que tudo se mova, mas há permanências e mudanças que são interessantes de serem apontadas. Babilônia 2000 reúne muito mais personagens do que Santo Forte, com intervenções diferentes. Um personagem como "People" por exemplo, citado no início desse artigo, tem apenas uma rápida participação, mas o que ele nos diz faz ressoar algo fundamental no filme, que é a vontade de falar e a força inventiva no uso da língua. Há personagens com os quais temos um contato bem mais longo, como é o caso de Dona Djanira, que conheceu Jucelino Kubicheck no "triplex" onde trabalhava, que lembra da história da mãe que "engomava o pai para ir para farra, pois o homem é da rua", mas diz que com ela não, ela não aceitaria uma situação assim, "nana-nina-não". A filha Cidinha fala de sua educação "elegante", "fui criada nesse estilo, compreende? Vestidinha, limpinha, cheirosinha...". As imagens da câmera que acompanhou Coutinho possuem uma estabilidade maior, uma qualidade mais "apropriada", com poucos movimentos de câmera, enquanto as que foram realizadas pelas outras equipes são perpassadas por uma instabilidade de base, estão sempre em movimento, perdem o foco em muitos momentos. Diferenças técnicas/estéticas muitas vezes imperceptíveis para o espectador e completamente desprezadas por Coutinho durante o processo de montagem. O que conta é a força dos personagens, como é o caso de Carolina, faxineira, mãe de duas belas filhas, que nunca ficou sozinha, que a bagunça da casa lembra "a de Charles Chaplin", que pinta o cabelo ao mesmo tempo em que prepara a ceia, que manda roupas para "o nordeste porque lá é muito pobre"; ou Roseli, que descasca batatas na porta de casa, e descreve sua relação com a comunidade da seguinte maneira: "nós fomos criadas aqui, nós nascemos aqui, nós não somos mais produtos do meio, mas fomos criadas no meio e não esquecemos o meio. A gente não vive mais no meio, eu e ela, mas meus pais moram aqui. (...)". Do seu modo, faz uma análise da religião no Brasil, descreve o que seria um país melhor, mostra a casa. Dois depoimentos longos e complexos com personagens entrevistados totalmente ao acaso, sem qualquer contato prévio. Eis alguns exemplos que indicam como a ideia de superficialidade, de superfície ganha, nesse filme, um outro sentido, radicalmente positivo. Um corte em profundidade não é necessariamente mais revelador do que a superfície, plena de sinais de vida, dor, saúde, doença. A radiografia informa, mas um bom médico pode diagnosticar pela cor da pele, pelos olhos, por efeitos na superfície do corpo e também pelo que é dito, pela linguagem.

Babilônia 2000 é resultado de um dispositivo, criado por Coutinho, frágil, mas absolutamente fecundo e libertador para quem quer fazer cinema. Mostra que é possível se transformar a cada filme, mantendo no entanto alguma coisa. Não uma ideia, um tema, um modo de fazer, mas um certo movimento que faz do cinema uma arte cada vez mais impura, aberta ao mundo, à diferença, ao imponderável, ao presente.

(Resenha escrita por Consuelo Lins, doutora em cinema e audiovisual pela Universidade de Paris 3 e documentarista. Retirada daqui.)

SERVIÇO
    Cineclube Buraco do Getúlio
    Dia 11 de dezembro, terça, às 20h
    Casa de Cultura de Nova Iguaçu
    Rua Getúlio Vargas, 51 - Centro - Nova Iguaçu
    Próximo à Estação de Trem de Nova Iguaçu

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