quinta-feira, 19 de maio de 2011

O Bandido da Luz Vermelha

A estética do lixo do bandido Sganzerla
Ao realizar com vinte e poucos anos O Bandido da Luz Vermelha, Sganzerla não apenas surge com um filme totalmente novo e genial no cenário algo institucionalizado em que vai se tornando o Cinema Novo. Mais que isso, seu primeiro filme vem apontar para um outro cinema, fatalmente batizado de marginal, descompromissado com construções narrativas e psicológicas. Um cinema do instante, ao mesmo tempo performático e reflexivo. E não surpreende que, antenado com a novidade, Glauber tenha também enveredado por essas trilhas, ao filmar Câncer. Apesar da fidelidade aos amigos, sua sensibilidade artística estava mais próxima do experimentalismo dos marginais Sganzerla e Bressane. O resto da sua trajetória solitária o confirmaria cada vez mais.

(...) Ver ou rever O Bandido da Luz Vermelha é uma curiosa experiência. Um mergulho num filme visceralmente identificado à sua época e, talvez por isso mesmo, ainda atual, nada tendo perdido do seu poder. Atemporal, nunca datado. Eterna lição de cinema.

O Bandido da Luz Vermelha é um intenso diálogo com o cinema, com o dado cultural em geral (quadrinhos, tv, música popular), com o Brasil em época de crise. As convulsões do país não se manifestam numa transposição metafórica, como no belo e lírico Terra em Transe. O sintoma em lugar do símbolo. Um bandido em lugar de um poeta. Cada elemento do filme diz essa convulsão, que não é só política, é total, pois que o político nada mais é que o viver-junto. O próprio filme como produto de um país pobre, periférico, em crise. Depois da estética da fome, a estética do lixo.

(...) Um país em crise pede um filme em crise. Crise da representação, impossibilidade de, sendo periferia, fazer cinema de primeiro mundo. Imagens das mais diversas naturezas entram em conflito, numa montagem heterogênea, colagem dos mais diversos objetos culturais. A temporalidade do filme de Godard, contemplativa e melancólica, busca do absoluto na arte e na vida despedaça-se, atomiza-se numa sucessão de instantes, um presente a gaguejar sem fim, infernal. Não há possibilidade sequer de avançar, evoluir ao longo da linha do tempo, quanto mais aspirar ao eterno. O bandido, manifestando a crise existencial de ser brasileiro quando o mar não tá pra peixe, grita, engole tinta, tenta se matar no mar depois de borrifar-se com detefon, e termina por dizer à câmera: "Quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha. Avacalha e se esculhamba."

(...) Sganzerla escolhe uma estratégia radicalmente diferente, diria até oposta, da do cinema novo. A metalinguagem, o discurso que se apresenta enquanto discurso, sem artifícios, destina-se a outro público. O filme fala de igual para igual com o espectador. Quem tem os dados para enxergar a mensagem que o faça e azar de quem não tem. O trato é com a inteligência. Não se trata mais de conscientização, ilusória proposta do cinema novo, nem de empatia, talvez seu verdadeiro veículo. Sganzerla, conscientemente, está falando para um público de classe média culto, seu semelhante. Aponta para o fim da ilusão de um cinema de transformação social, tabu cinemanovista até então incólume.
(...) Questionar o poder do discurso da arte leva a questionar a própria arte e o lugar do artista. Não mais a certeza da nobre missão política do artista engajado. Não mais a certeza do poder do discurso cinematográfico. Talvez esteja aí a razão profunda do conflito entre marginais e cinemanovistas.



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