“Rainha Diaba”, de 1974, é um monumento. Críticas apressadas de jornalistas idem taxaram o filme – na época do seu surpreendente relançamento em dvd – como uma ode tresloucada ao “homossexualismo marginal”. As mesmas pessoas que produzem páginas e páginas sobre qualquer blockbuster norte-americano sofrem de calafrios ao escreverem umas poucas linhas sobre as obras-primas rodadas na esquina de suas casas. Qualquer filme brasileiro esquecido (que não renda jabaculê) vira superficial, simplista e facilmente rotulável. Pura ignorância.
Basta dizer que antes de Almodóvar, antes de John Waters, houve Antônio Carlos Fontoura. Levemente inspirado no malandro da vida real, Madame Satã, Fontoura aliou-se ao gigantismo de Milton Gonçalves – com certeza aqui, sem nenhum exagero, em uma das dez maiores interpretações da história do cinema mundial – e deu à luz um filme sublime, inovador, que ainda hoje produz indisfarçável mal-estar em quem, sentado no conforto de sua casa, o assista.
A imagem que se tem de Satã é a do “pederasta” – assim fichado pela polícia varguista de seu tempo –, undergroundtotal, com plumas, brilhos e paetês, gingado de capoeirista e apetite sexual intenso. Já a ficcional Diaba (Milton Gonçalves) guarda destas qualidades apenas algumas, pois não é o solitário réu da Lapa, cavaleiro andante de punguistas e contraventores. É dono de mais de uma dezena de bocas, controla o narcotráfico, estabelece relações maternais com o séquito de outras moçoilas, que protegem-na como os aprendizes à mestra.
Diaba é criminosa nata: aplica mão de ferro para garantir a qualidade dos serviços à população mas, por outro lado, preocupa-se em cozinhar quitutes para a marginália gay que o cerca, apavorado que estava com os traidores que tentavam acabar com sua autoridade empresarial.
O argumento de Plínio Marcos – dramaturgo, ator, dionisíaco, um vulcão, falecido em 1999 – e do diretor, Antônio Carlos Fontoura, inventa focos múltiplos de ação no roteiro escrito pelo segundo, o que tende a aguçar a vontade do elenco. Digo isso pois não apenas Milton Gonçalves é verdadeiramente indescritível, mas os bandidos, Odete Lara e a trupe de amigas (formada, dentre outros, por Perfeito Fortuna, que deu um tempo nas dunas de Ipanema para incursão ao lado menos aristocrático da cidade) assustam, brutalizam e tornam o filme um momento de lucidez, certeiro ao atingir a alma kitsch e doentia dos personagens.
Vale a pena citar a fotografia de José Medeiros – concretizando a saturação pedida pelo universo retratado –; o figurino de Ângelo de Aquino; a música, atordoante, a cargo de Guilherme Magalhães Vaz; a edição de Rafael Justo Valverde; a co-produção da Lanterna Mágica, R.F. Farias, Filmes de Lírio e Ventania Filmes – esta última do saudoso Paulo Porto, neto do cacique Ventania, que dera o nome à firma.
Antônio Carlos Fontoura é um realizador bissexto. Traz no currículo o seminal “Copacabana Me Engana “ (1968) – também com Odete Lara, estréia de Carlo Mossy no cinema – e “Espelho de Carne”(1984) – clássico da “Sala Especial”, com Dênis Carvalho e Daniel Filho em momentos de suprema intimidade. Dirigiu também programas de tv, dentre eles “Plantão de Polícia” e “Ciranda, Cirandinha”.
O trabalho de Fontoura é inspirador – porque nunca previsível –, apesar de a produção cinematográfica brasileira se ressentir da quantidade de histórias que poderiam ter vindo a público e não vingaram. Incansável, mas sabendo operar além dos grandes refletores e da badalação da mídia, Fontoura é destes mestres que a arte nacional guarda próximo ao peito, e gerações recentes procuram ávidas, em busca de informações. Ao encontrá-las, saberão um pouco mais de si mesmas e, quem sabe, das delícias da criação humana.
por Andrea Ormond, de http://estranhoencontro.blogspot.com/2005/10/rainha-diaba.html
SERVIÇO
Cineclube Buraco do Getúlio
Dia 07 de junho, às 19h
Rua Getúlio Vargas, 51 - Centro - NI
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