quinta-feira, 22 de março de 2012

4º Filme do Ciclo Fernanda Montenegro

Ao longo do novo filme de Andrucha Waddington, vez ou outra vem a impressão de se estar na sala de cinema para ver e ouvir o vento. Por mais que as imagens transmitam uma grande segurança em relação ao que está sendo construído no filme, é possível enxergar um desejo mudo em Casa de Areia: ter uma narrativa de fundo sustentando um belíssimo documentário sobre o vento que sopra nos lençóis maranhenses.

Há um vigoroso estudo de paisagem e de ritmo que pouco a pouco se comprova inseparável da trama calcada no tempo e no corpo. O fato é que Casa de Areia, já nos seus primeiros minutos, oferece menos uma estrutura psiconarrativa imediatamente mapeável do que uma experiência que se funda na desordem empírica dos acontecimentos, com a sensibilidade espacial e a narratividade dos olhares adquirindo uma potência sobrecomum.

Assim como em Wong Kar-wai (Ashes of Time, Amor à Flor da Pele), aqui uma temática do tempo e da passagem constitui o arcabouço de um cinema das elipses. Toda passagem se deixará então produzir sob a forma da dissimulação, da prestidigitação. A montagem em cortes secos apenas exacerba no filme a indeterminabilidade – ao menos num primeiro momento – do tempo transcorrido entre um plano e outro, essa cronologia fugidia estando na base de sua composição elíptica.

Mas em Casa de Areia não se experimenta a vertigem de alguns filmes de Wong (Days of Being Wild, Felizes Juntos), pois tanto a noção de movimento está no caminhar vagaroso que as areias das dunas impõem quanto o projeto estético de Waddington – muito antes de incorporar a sensação de queda em abismo – pede uma firme atrelagem ao solo, seja pela busca de uma qualidade da mise en scène (busca que transcorre em sentido positivo, sem render, por exemplo, o incômodo “peso da imagem” de Lavoura Arcaica, ou a sofisticação às raias da esterilidade de Abril Despedaçado), seja pela confirmação de uma poesia de geólogo, que examina a terra para extrair-lhe uma beleza que é mais textural do que “essencial”.

De Eu, Tu, Eles a Casa de Areia, esse telurismo passou por radicais mudanças cromáticas e físicas. Ao sertão de cores quentes, onde a terra é o que nunca sai do lugar, se segue uma paisagem colorida-em-branco-e-preto e em eterna mobilidade. Se há como falar de uma espacialização do tempo em Tarkovski, em Casa de Areia o processo parece se inverter e resultar na temporalização do espaço, uma vez que este deixa de ser aquilo que permanece e se torna parte do elemento movente, eixo indistinto de um espaço-tempo que escorre nessa locação que nada é senão um imenso relógio de areia. Por isso um ponto do “sistema” pode estar a “um dia e meio” de outro – a medida da distância é o tempo.

No seu mergulho ao “Brasil profundo”, Waddington já havia mostrado não apenas a preferência por configurar um lugar isolado, mas também a proposição de uma nova matemática do mundo e dos homens (em Eu, Tu, Eles, um teorema afetivo insolúvel; em Casa de Areia, a geometria de um espaço curvo).

E é já em Gêmeas, seu primeiro longa-metragem, que se instaura uma obsessão da semelhança que os filmes posteriores re-trabalham: rostos parecidos ou mesmo repetidos, histórias que se reciclam ao capricho do destino, sucessão espacial desdiferenciada.

Em Casa de Areia, no solo movediço em que todo traço e todo vestígio são apagados, a semelhança é a forma que mais se aproxima da permanência. O que não é possível é justamente a “escritura”, a tentativa de demarcar limites no território ou livrar alguma coisa do esquecimento através da sua conversão em signos legíveis. O halo solar, na cena após o eclipse, só fica registrado na chapa sensível porque constitui uma marca de natureza indicial, responde diretamente à experiência presente. 

Já no segundo plano do filme, após a lenta tomada aérea que transforma o espaço em pura superfície (quase uma gravura), Waddington inscreve a magnificência dos quadros numa estética do pleno preenchimento em que o elemento fora-de-campo não estará necessariamente em contigüidade com o enquadrado, mas antes será o que provisoriamente não pertence ao filme. Os movimentos (de câmera, de personagens) se desenvolvem lateralmente, e as imagens se formam menos numa relação de fundo-superfície do que num crescimento para os lados – discreto parentesco estético com Gerry que parece explicitado no início do filme, com a câmera praticamente repetindo um enquadramento de Gus Van Sant ao acompanhar de perto os rostos de Fernanda Torres e Fernanda Montenegro lado a lado enquanto caminham. Todo distúrbio que houver nesse ambiente será, de alguma maneira, uma ruptura dessa topografia, uma recusa a essa premissa de “movimentos de orla”. 

Na inextensão desse espaço em que a História é um eco distante, uma matéria de cinema fantástico entra quase que por osmose, e um eclipse ou uma lua mélièsiana desdobram em fábula toda a performance meteorológica que o filme traz. Princípio mantido até o fim: sob um céu de ficção científica, mãe e filha se reencontram após anos e anos de uma separação que apenas concretizara a distância entre seus mundos interiores opostos. A composição visual da cena que encerra Casa de Areia não esconde sua tarefa de ser também um equilíbrio dos contrastes (de enquadramento, de tom) – e uma conciliação com as cores. Antes desse equilíbrio, contudo, foi dando boas-vindas às intempéries que Waddington evitou uma lógica de aquariofilia (que não permitiria a entrada de qualquer coisa que escapasse a uma certa escolha visual/temática) e encontrou uma força na entropia do espaço que só tem a somar para sua proposta estética.

Casa de Areia é ao mesmo tempo um projeto distante e complementar a Eu, Tu, Eles. O mesmo feelgood no desfecho, a mesma candura disfarçada na crueza, o mesmo prazer em fazer retornar o “semelhante”. O distanciamento está em não se limitar à repetição, não aderir à tautologia autoral, e sim querer expandir seu horizonte de cinema.

(retirado daqui)



SERVIÇO
    Cineclube Buraco do Getúlio
    Dia 27 de março, terça, às 20h
    Casa de Cultura de Nova Iguaçu
    Rua Getúlio Vargas, 51 - Centro - Nova Iguaçu
    Próximo à Estação de Trem de Nova Iguaçu  

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